A imagem de uma hiena-marrom perambulando por uma cidade mineradora abandonada da Namíbia valeu a Wim van den Heever o grande prêmio do concurso Fotógrafo da Vida Selvagem do Ano de 2025. A imagem pode despertar maior consciência sobre esta evasiva espécie africana.
À noite, a cidade de Kolmanskop, há muito tempo abandonada, fica quase vazia.
Durante o dia, grupos de turistas costumam visitar o lugar para conhecer suas construções agora invadidas pela areia.
No início do século 20, o local foi um centro de mineração de diamantes, perto do litoral da Namíbia.
Eles já retornaram aos seus hotéis para passar a noite, mas as ruas desertas ainda observam algum movimento.
Entre as sombras das construções em ruínas e becos cobertos de areia, surge se esgueirando uma solitária hiena-marrom.
Um flash brilhante ilumina a cena e marca o ápice de 10 anos de trabalho do fotógrafo da vida selvagem sul-africano Wim van den Heever.
Assim foi tirada a foto vencedora do grande prêmio do concurso Fotógrafo da Vida Selvagem do Ano de 2025, promovido pelo Museu de História Natural de Londres.
É uma imagem fascinante não apenas pela sua composição, mas também pela modelo.
A hiena-marrom é a espécie de hiena mais rara do mundo. É também um animal notadamente adaptado e oportunista, que adotou a cidade mineradora abandonada da Namíbia como seu lar.
A hiena-marrom ajuda a trazer nutrientes vitais do Oceano Atlântico para o deserto
Foto: Marie Lemerle / BBC News Brasil
A foto ‘impossível’
Van den Heever fotografa a natureza em todo o mundo e retorna ao deserto do Namibe uma vez por ano. Já nas suas primeiras visitas, ele se convenceu de que uma hiena-marrom passeava à noite pela cidade-fantasma.
“Eu via excrementos ou rastros de hiena na região”, ele conta.
Van den Heever logo teve a ideia de fotografar o animal no incrível cenário da cidade-fantasma.
Depois de tentar diversas abordagens diferentes, o fotógrafo passou a acordar entre duas e três horas da manhã, para retornar a Kolmanskop e montar sua câmera, quando a cidade ficava totalmente vazia.
Mas capturar a imagem foi extremamente difícil. A hiena-marrom é um animal tímido, ativo principalmente à noite.
Após anos de tentativas, Van den Heever conseguiu fotografar apenas vislumbres do animal, distante da cidade, muitas vezes correndo na direção oposta.
Agregue-se a isso o ambiente assustador do deserto do Namibe. Ventos vindo do leste traziam areia que se acumulava até um metro de altura sobre seu equipamento fotográfico durante a noite.
“Tive um ou dois anos em que as câmeras foram totalmente destruídas”, ele conta.
Quando o vento do oeste soprava do oceano, trazia forte neblina. “Nestes casos, mesmo se houvesse uma hiena na foto, você não poderia vê-la porque a neblina era simplesmente muito espessa.”
Van den Heever capturou a imagem de outros animais além da hiena-marrom, incluindo um chacal
Foto: Wim van den Heever / BBC News Brasil
Por fim, havia a questão de onde instalar a câmera. Van den Heever imaginou o caminho que a hiena poderia seguir ao atravessar a cidade abandonada.
“Sempre pensei que, se algo fosse andar deste lado para aquele, precisaria vir através deste trecho plano”, explica ele.
“E, se eu puder programar a câmera corretamente, posso pegar a hiena aqui e a casa, ali. E foi basicamente assim que eu escolhi a composição e alinhei as câmeras.”
Definido isso, era questão de esperar.
Foram 10 anos de visitas a Kolmanskop. As câmeras de Van den Heever capturaram dois chacais se encaminhando em sentido contrário, mas nenhuma hiena-marrom.
Até que chegou a noite em que as condições estavam corretas e a hiena caminhou exatamente por onde Van den Heever havia previsto.
“Minha câmera disparou três vezes naquela noite”, ele conta. “Uma vez quando testei o cenário. Na segunda vez, nada aconteceu. E, na terceira, havia uma hiena na imagem.”
Van den Heever afirma ter chegado perto das lágrimas ao ver a foto pela primeira vez, na parte de trás da câmera.
“É exatamente como eu imaginava. É exatamente o que eu procurava desde o primeiro dia. É por ela que eu concentrei todos os esforços, todas aquelas temporadas tentando, até conseguir.”
Acredita-se que existam cerca de 4.370 a 10.110 hienas-marrons remanescentes no sul do continente africano. É a espécie de hiena mais rara do mundo.
Ela é considerada uma espécie “quase ameaçada”, mas seus números parecem estar mais ou menos estáveis, segundo Marie Lemerle, chefe do Projeto de Pesquisa da Hiena-Marrom, sediado na cidade de Lüderitz, a cerca de 12 km de Kolmanskop.
“É uma espécie muito esquiva”, explica Lemerle. “Elas provavelmente estão em muitos lugares onde as pessoas, na verdade, não esperam que elas estejam.”
A hiena-marrom também é um animal silencioso. A hiena mais famosa já encontrada tem um chamado característico que pode percorrer longas distâncias, mas a hiena-marrom não chega nem perto desse nível de expressão.
“Elas podem passar ao lado da sua barraca [à noite] e você pode nem ouvi-las”, segundo Lemerle. “Você só verá os rastros na manhã seguinte.”
Kolmanskop e Lüderitz ficam em um parque nacional um pouco maior que o Estado de Sergipe, que foi fechado ao público em 1908, devido à mineração de diamantes.
O acesso ao parque não é mais tão controlado hoje em dia, mas ele permanece “um desses raros lugares do mundo quase intocados”, afirma Lemerle.
Nesta região, a hiena-marrom é o principal predador. Ela se alimenta principalmente de filhotes de focas no litoral.
Ela desempenha papel fundamental, trazendo nutrientes para o ambiente inóspito do deserto, pobre em recursos, explica Lemerle.
As cidades mineradoras abandonadas também oferecem à oportunista hiena-marrom uma trégua do calor no cenário exposto e sem árvores da região.
“As hienas certamente gostam de usar essas construções antigas como abrigo”, ela conta.
Em outra cidade mineradora abandonada a cerca de 30 km de distância, uma hiena teve recentemente um filhote no porão de uma velha construção dilapidada.
“Havia uma velha cozinha, um grande e velho fogão no fundo, com alguns canos entrando nas paredes, e ela usou um desses canos para dar à luz”, conta Lemerle. “Ela realmente ainda usa canos velhos e elementos antigos construídos por seres humanos como esconderijo.”
Esses assentamentos antigos podem ser úteis para a espécie, mas novas construções e rodovias são algumas das principais ameaças enfrentadas pelas hienas-marrons, segundo Lemerle. E o atropelamento nas estradas é uma das suas principais causas de mortalidade.
Fora do parque, o conflito com seres humanos é outra fonte de mortalidade, pois os fazendeiros, às vezes, tratam esses necrófagos como pragas.
“As hienas, em geral, possuem má reputação”, segundo Lemerle, “embora as hienas-marrons, normalmente, não sejam caçadores muito eficientes.”
Às vezes, elas são consideradas “animais feios e fedorentos”, que fazem pouco além de causar incômodo. Mas esta reputação é imerecida, segundo Lemerle.
“Na verdade, elas desempenham papel muito importante como necrófagos, limpando o ecossistema de doenças e carcaças em decomposição.”
A hiena-marrom é uma espécie criativa e faz uso de construções abandonadas no deserto como abrigo
Foto: Wim van den Heever / BBC News Brasil
A zoóloga Natalie Cooper, do Museu de História Natural, espera que imagens como a de Van Den Heever possam ajudar a mudar a percepção sobre a espécie.
“A imagem nos relembra que os seres humanos e os animais selvagens fazem parte do ambiente, de forma que precisamos trabalhar em conjunto para vivermos lado a lado”, explica ela.
De forma geral, a fotografia pode nos ajudar a completar nossa compreensão do mundo natural, segundo Cooper. Afinal, a biodiversidade global está em franco declínio devido às atividades humanas, mas muitas pessoas podem ter dificuldade para processar o que realmente significa esta informação.
“Acho que as fotografias realmente podem ajudar a fazer as pessoas pensarem”, afirma ela.
Ao refletir sobre os 10 anos passados para tentar conseguir sua imagem premiada, Van den Heever ri.
“Eu me esforcei muito para conseguir a imagem e preciso rir de mim mesmo, pois isso demonstra que, ou eu sou muito dedicado, ou sou muito burro — não sei qual dos dois.”
Sua recente premiação no concurso Fotógrafo da Vida Selvagem do Ano, sem dúvida, pode ter eliminado a última opção, mas Van den Heever afirma que ainda não encerrou seu trabalho com este cenário ou com este animal.
“Sempre há algo que pode ser acrescentado”, segundo ele.
“A hiena poderia ter um filhote de foca na boca, poderia estar piscando para você, poderia haver duas hienas. A hiena poderia ter pulado na imagem.”
“Por isso, sempre voltamos e tentamos fazer algo diferente. Os fotógrafos nunca estão satisfeitos.”
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Earth.
https://www.terra.com.br/noticias/mundo/por-dentro-da-cidade-fantasma-que-abriga-a-hiena-mais-rara-do-mundo,9056a5f560e2bcddc1e7c7cf6a80ebb4ajmklbbe.html
